22 agosto 2006

Retrocesso civilizacional

Notícia de ontem da BBC:

Smoke's no joke for Tom and Jerry
Tom and Jerry
Tom and Jerry first appeared in 1940 cartoon Puss Gets the Boot
Children's TV channel Boomerang is to edit scenes from Tom and Jerry cartoons where characters are shown smoking.

The move follows an investigation by media watchdog Ofcom into a viewer's complaint that the vintage animations were not appropriate for young viewers.

The watchdog recognised the "historic" cartoons were made at a time "when smoking was more generally accepted".

However, Boomerang will only edit those cartoons where smoking appears to be "condoned, acceptable or glamorised".

Two such cartoons include Texas Tom from 1950 and Tennis Chumps from 1949.

'Stylised manner'

In the former Tom is shown trying to impress a female cat by rolling a cigarette, lighting it and smoking it with one hand. In the latter, Tom's tennis opponent is seen smoking a large cigar.

"We note that in Tom and Jerry smoking usually appears in a stylised manner," said Ofcom.

However, it said that "the level of editorial justification required for the inclusion of smoking in such cartoons is necessarily high".

"Depictions of smoking may not be problematic given the context," it continued.

"But broadcasters need to make a judgement about the extent to which a particular scene may or may not genuinely influence children."


Já sabia que algo deste género ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Temo que se vá tornar numa bola de neve.

Não entrando (ainda) em avaliações normativas, a enormidade que se vai praticar é esta: vai-se alterar a obra de um autor sem que este dê consentimento nem autorização. A isto chama-se censura, e os seus autores justificam-na com um objectivo maior, evitar que as crianças estejam expostas a uma suposta "glamourização" do tabaco.

Basicamente o que estes reguladores / censores defendem é a desresponsabilização das famílias e tomam também os jovens / crianças como idiotas. Ao contrário da época em que estes "cartoons" foram produzidos, a evidência quanto aos malefícios do tabaco está disseminada, e os educadores (pais, professores e outros) podem elucidar os infantes sobre este assunto, se estes não tiverem curiosidade suficiente para fazer uma pesquisa na Net.

Quanto à questão dos conteúdos, já antecipo o contra-argumento dos censores: se ninguém vai tentar fazer as maldades que o Coiote tenta fazer ao Bip-Bip, porque mesmo uma criança se apercebe que são um exagero, enquanto o tabaco é uma componente do dia-a-dia, a violência nos "cartoons" pode continuar não editada, ao contrário das cenas envolvendo tabaco. Mas o que será mais eficaz: varrer o problema para debaixo do tapete, ou reforçar a exposição dos malefícios do tabaco?

Daí passamos à bola de neve: quando se lembrará um zeloso censor de exigir às editoras a censura das passagens que se referem ao uso de opiáceos por parte de Sherlock Holmes? E quando deixaremos de ter Humhprey Bogart a fumar compulsivamente, passando talvez a vê-lo em Casablanca a desembrullhar furiosamente chupa-chupas? É que não se iludam: a mesma defesa da idiotização das crianças irá em breve alastrar a outras faixas etárias, dado que o puritanismo reforça-se de "vitórias" como esta.

Dito isto, nada tenho contra autores que mudam a sua obra ou obras passadas em função dos tempos em que vivem. Morris baniu o tabaco de Lucky Lucke em 1983. Mas, tanto quanto sei, os álbuns anteriores não foram retocados, com ou sem o consentimento do autor.

A comparação com as pinturas "imorais" de Miguel Ângelo é inteiramente apropriada. Estiveram abastardadas durante séculos, até que foram devolvidas à sua pureza (ou depravação?) original, por decisões de pessoas que compreendiam o que é a Arte.

Filmes, bandas desenhadas, canções e outros artefactos culturais não podem ver a sua forma original alterada a menos que os criadores dêm o seu aval. Caso isso aconteça devido a poderes superiores (por pouco esclarecidos que sejam), as versões originais devem continuar a poder ser acedidas por quem assim o entender. Se as quiserem acompanhar de prévios líbelos moralistas contra as descrições de certos eventos, façam-no. Mas deixem-nos continuar a ver Humphrey Bogart a fumar e James Cagney a emborcar whisky e não shots de laranjada sem gás, sem conservantes e baixa em calorias. Em nome sobretudo da integridade das obras culturais, mas também (e bastante) em nome da preservação da nossa capacidade de reflectir sobre o mundo que nos rodeia e tomar decisões esclarecidas em consonância. Obrigado.

05 agosto 2006

Mais "vintage reggae"

O que vale é que os outros vão colocando coisa interessantes na Net que nos permitem manter um blogue actualizado durante a "silly season". ;)

No Reggae Vibes, a actualização mensal da secção "Sounds", particularmente a categoria "Vintage", traz-nos sempre entretenimento garantido. Passando por cima dos dois primeiros temas, o excelente tema de Early B tem aquele delicioso "feeling" do dancehall surgido a partir de meados dos anos 80. Os temas do Studio One têm a chancela de garantia habitual, mas destes o destaque vai para a deliciosa versão de um clássico dos Wailng Souls pela banda de estúdio Sound Dimension, aplicação rudimentar do dub, bem à maneira das produções Studio One nessa vertente, mas cuja ingenuidade nos consegue agarrar desde o início.

A verdadeira revelação para mim está nos "dubs" do produtor Harry A. Mudie. Das figuras mais criminosamente ignoradas da história da música jamaicana, a sua coroa de glória foi a produção do tema clássico de John Holt, "Time is the Master", mais algumas canções cuja gravação permitiu o lançamento do LP clássico de 1973 com o título da canção. A sua produção está contudo pessimamente divulgada, nalguns poucos CDs de import através da sua etiqueta Moods (e outras relacionadas), e quase sempre esgotados. Espera-se que a Sanctuary, detentora dos catálogos da Trojan (que chegou a ter uma compilação dedicada aos trabalhos do produtor) e da Creole proceda à produção de pelo menos uma compilação do autor, tão cedo quanto possível.

Talvez o aspecto que mais distingusse as produções de Harry A. Mudie fosse a utilização de instrumentos de cordas, algo que antes de ser adoptado faria um jamaicano dizer que teria tanto sucesso como aparecer um gajo a tocar reggae com melódica (esse gajo existiu, chamou-se Augustus Pablo). Não sendo um apreciador do género dub, que me parece muitas vezes demasiado preocupado com a dissecação da música, em detrimento da sua fruição, os 3 dubs de Harry A. Mudie são contudo excelentes, apresentando as características fundamentais da sua música e acresecentando-lhe (e retirando-lhes) elementos que, alterando a perspectiva de audição, em nada comprometem o puro prazer de ouvir estas faixas. Tenho meia dúzia de CDs de dub na minha colecção, mas o próximo, se as editoras o permitirem, será sem dúvida de Harry A. Mudie.

Esta secção estará "online" no "site" até 6 de Setembro, sendo renovada na noite desse dia. Divirtam-se.